27 junho 2018

NOTÍCIAS DO LADO DE LÁ

Morreu Juvânia. Obviamente filha de Juvenal da padaria e Vânia do lar (numa época em que existia lar nas casas).

A morte dela me atinge indiretamente através da lembrança, antiga, de eu menino querendo crescer e tomar o trabalho de Juvânia. Recordo a figura dela sentada diante da fila de dois ou trinta resignados, cada qual com suas páginas de formulários em tantas vias. Tinha habilidades de rotina. Recebia as páginas, cinco dedos espalmavam sobre papéis no balcão e outros cinco firmes na cabeça do carimbo. Almofada azul, pancada na primeira via. Almofada azul, pancada na segunda via. Almofada azul, pancada na terceira via. Juvânia não falava nada, apenas a mão direita golpeava a almofada azul repetidas vezes. Anel de pedra vermelha na destra, pancada em outra via, não movia nada além das mãos, cada qual na sua função automatizada. Devolvia sempre uma página a menos. A mão direita repousando sobre o carimbo, o carimbo repousando sobre a almofada azul, os dedos da mão esquerda recolhiam única via á gaveta. Os dedos da mão direita não soltavam o carimbo quando a boca sibilava "próximo". Juvânia ereta e quieta enquanto a canhota se estendia abocanhando novos formulários com suas variadas vias. O resignado anterior saia organizando páginas, as vezes sorria. Eu admirava tamanha habilidade e decidi, quando crescesse ia trabalhar como carimbador. Não entendia Juvânia, que fazia toda magia num mau humor danado!

Agora essa, recebo notícia que morreu Juvânia. Recordo o departamento bucólico em minha cidade de origem e abro nova frustração; cresci, vim para a capital e esqueci de ser carimbador. Decerto nem mesmo lá nos cafundós se usa mais carimbos!

07 maio 2018

HILDA


Chovia quando o caminhão chegou trazendo a mudança daqueles polacos. Se não eram polacos que fossem dinamarqueses, ou noruegueses, ou então de outra Escandinávia qualquer, onde todo mundo tinha olhos azuis e cabelos cor de fogo. Hilda era a moça da família que veio morar na fazenda, em frente ao nosso sítio, tinha um par de olho azul, tão azulado, mas tão azulão, que a gente olhando assim, de cima pra baixo - ela era bem maior que eu, até chegava a confundir com duas bolotas de céu sem nuvens. O corpo era cheio de ferrugem. Passado uns tempos sua pele foi perdendo o brancor até ficar tostada, foi assim que a ferrugem terminou parecida mesmo com paçoca de amendoim com rapadura. O pai pegava o amendoim, dizia 'achega' e todo mundo chegava para tirar as cascas e tacar no mato. Aí era vez de botar os amendoins cascados no forno. Torrava pouco, só por amor de tirar a pele vermelha, deixando os caroços limpos. O pai despejava num tacho, pegava o moedor e socava todo amendoim dentro. Não moía muito fininho não! Moía médio, mais triturado fino que moído grosso e já ia caindo óleo e tudo numa panela. Acabava que a moagem pra dentro da panela livrava o tacho. Com ele vazio o pai pegava duas rapaduras de engenho, feitas no sítio da Fióta, uma negra que ficava mais preta ainda quando estava emparelhada com a mãe da Hilda - e as duas postas juntas era uma coisa bonita de ser vista. Mostrava as diversidades da natureza, me fazia maquinar que cada uma tinha sido formada para sustentar vida numa parte diferente do mundo. A mãe da Hilda atropelava as palavras pra dizer que lá de onde ela vinha tinha muito frio, muita umidade! Eu guardava pra mim se não era por isso que a família inteira tinha enferrujado. A Fióta não desembestava a língua, ela tinha era um jeito de falar arrastado, manso, de quem recordava as imagens que o cérebro ia transformando em palavras. Atiçava preguiça na gente ouvir a velha contando das terras de suas origens, que ficavam lá pras bandas de onde o calorão só não queimava a alma. No final deu que as duas, cada uma do seu jeito e com sua história, não ficaram onde tinham sido feitas pra povoar. Vieram completar o povoado do Triângulo Mineiro, que tinha sol de sobra, capaz de chamuscar até pedaço da alma e também um tiquinho de frio pra tiritar os dentes, ia da época do ano. Mas deixa eu tornar o assunto da paçoca... As rapaduras compradas, ou trocadas por algum frango, eram colocadas em riba da mesa feita de tóra, que mesa de trabalhos na cozinha não podia ser fraca não, e então o pai pegava o facão, colocava meio de chanfra na quina da rapadura e batia com o cotoco de caibro. O facão entrava na rapadura tirando lascas fininhas, que iam quebrando parecendo tijolo ralado. Depois de muito cotoco batido no facão chanfrado, restava a montuera de rapadura lascada dentro do tacho. Nessa hora o pai deixava a gente comer umas iscas. Não muito, que era pra não faltar doce na paçoca, mas deixava. Depois botava o tacho na trempa maior do fogão de lenha e as raspas iam se derretendo todinhas, virando um melaço que a gente nem podia chegar perto. O pai danava, dizia 'arreda' e a gente arredava! Antes, quem dizia 'arreda' era meu avô, depois ele morreu e o pai ficou com o costume de dizer ‘arréda’ pra tirar as crianças pra longe. Então tenho pra mim que a gente se arredava pra longe mais por costume. Eu ficava de longe esticando os olhos pra dentro do tacho, lambendo os beiços, morrendo de vontade de queimar a língua naquele doçal todo. O pai pegava a panela de amendoim triturado fino, despejava tudo no meio do melaço e ia misturamexendo até virar uma pasta cheirosa, pedindo pra gente meter o dedo ali e experimentar o gosto. Só não metia o dedo porque o pai dizia 'arreda' toda hora e ninguém era besta de não obedecer. Mas no que o cheiro de cana e amendoim ia subindo do tacho a gente também ia desarredando. Aos poucos, meio pé de cada vez, logo já estava a criançada toda em volta do tacho. Os maiores atrás dos menores, porque se o pai injuriasse e desse um pescoção pegava nos primeiros. ARREDA! Arredava todo mundo deixando espaço pro pai tirar o tacho do fogo. Ele, segurava alças com um pano molhado, pra não queimar as mãos. A mesa de tóra rangia com o peso do tacho borbulhando docegrude, mas aguentava! Nisso o pai já tinha preparado, na outra banda da mesa, a pedra de granito arrodeada de ripas pregadas uma nas outras, formando um quadrado. Ele despejava o doçal mole em riba da pedra e ia espalharrumando pra ficar retinho. Nisso a gente ficava raspando o tacho com pedaços de taboca, os maiores na frente, tirando restinhos de doce quente e botando pra derreter na língua. Depois que terminava de misturarrumar o doce, papai cobria tudo com um pano saca de farinha, branquinho, molhado, pra ajudar a esfriar e endurecer a paçoca sem escapar cheiro. Então dizia 'arreda' mais uma vez e se ia pra lavar o tacho e a colher de pau. A pedra coberta com pano de saca ficava bom tempo esfriadurecendo. As vezes dormia ali em cima da tóra. Ninguém mexia, ninguém era doido! Depois vinha o pai com o facão, tirava a saca branca de cima e começava a cortar o endurecido em quadrados miúdos. Era só o tempo de o pai sorrir, provando o primeiro pedaço e todo mundo já podia alimentar a solitária. O pai fazia cara de satisfação enquanto a família mastigava a paçoca. Pra mim, a cor dessa paçoca era igualzinha da cor que a ferrugem da Hilda ficou após queimar no sol de Minas. Eu ficava olhando aqueles ombros da Hilda, na cor de paçoca do pai, e dava uma vontade de botar a língua ali e experimentar o gosto. Não dava vontade de morder não, só mesmo de botar a língua e sentir se era doce. Um dia falei pra Hilda que assim, do pescoço passando pelo ombro inteirinho até a curva do braço dela, tinha cor de paçoca do pai. Ela não deve ter entendido, daí expliquei que eu ficava com vontade de botar a língua ali pra sentir o gosto. A Sueca ficou me olhando com os dois olhos azuis muito abertos, tentando alcançar o que eu estava dizendo. Eu era moleque ainda, mas já bolinava com minhas intimidades, também já tinha esse jeito de controlar os nervos e dizer as coisas que estou pensando, mas escondendo as malícias lá no fundo, bem detrás dos olhos. Ainda faço isso! Faço de um jeito que as mulheres ficam olhando dentro dos meus olhos e só enxergam sinceridade mesmo - que é a única coisa que existe pra ser vista! Então Hilda assuntou lá dentro dos meus olhos e viu que eu estava mesmo só com vontade de experimentar o gosto do ombro, saber se tinha sabor de paçoca do pai. Disso ela deve ter ficado com vontade de me deixar experimentar... Penso isso porque ela pegou minha mão e me levou pra dentro do paiol, arredou a alça da blusa e ofereceu aquela paçoqueira toda, que ia do pescoço até a dobra do ombro. Eu botei a língua lá e não tinha gosto de paçoca do pai não, mas dava uma sensação boa, doce, quente que só raspa do tacho na ponta da taboquinha. Fiquei ali botando a língua no ombro dela e segurando os nervos pra não perder o controle das malícias, que perigava elas escaparem de detrás dos olhos pra vir bambear as pernas. A bem da verdade, meus joelhos falsearam! As pernas tremelicaram um bocadinho quase me traindo pra Hilda... Num é que ela nem botava reparo nas minhas ansiedades? Cerrou as pálpebras, apagando os olhos azuis e ficou dando uns gemidinhos meio suspirado, meio gemido mesmo, dum jeito que aquilo foi me atiçando - igual quando eu me bolinava as partes, e fazendo crescer a vontade de nunca mais tirar a boca da paçoca dela. Hilda desceu a blusa um pouco mais, mostrou parte da pele onde o sol ainda não tinha queimado. Era só ferrugem esparramada inteirinha até onde fazia a curvinha do seio - uma coisa bonita de ser ver. Então ela me empurrou a cabeça para que a língualambenta saísse da paçoca e ocupasse os lados das ferrugens. Eu levei a língua pra lá e fui descendo, descendo, sempre com a mão dela me obrigando a dar língualambidas mais pra baixo. Daí que apareceu o bico do peito de Hilda. Parecia uma amora, só que mais pra amorinha encruada, daquelas que não desenvolve e fica piquitinha no galho, quase madurando, uma parte branca e outra vermelha desbotada. Era uma amorinha boa de botar a boca! Nem era azedinha como de costume são as amoras ainda desbotadas. Eu lingualinguando a ferrugem do seio, nem percebi quando a blusa da Hilda desceu até o umbigo. Quando dei por mim a mão dela estava empurrando minha cabeça, pedindo pra língua ir lingualamber lá onde começava a saia. Eu fui botando a língua ali, assim, no temor de fazer algo errado, arrodeando o umbigo enferrujado dela... Nisso os panos atrapalharam meu lingualinguar.  Era Hilda já levantando a saia! As coxas da moça eram torudas, grossas e inteirinha enferrujadas também, mas nem deu tempo de reparar muito. Hilda empurrou minha cabeça e obedeci, fui lá, pretimoso, botando a boca entre as coxas dela. Daí que encontrei as partes femininas, que eu nunca tinha visto ainda, toda rodeada de pelos. Não era uma coisa bonita de se ver não! Mas não refuguei. Só dei uma estancada por amor de acostumar com a visagem e também me apresentar de boa educação pras intimidades dela. Mas Hilda não quis saber de afabilidades, empurrou e mandou, de voz bem mandada, que eu botasse a língua lá dentro. Eu nem sabia onde exatamente tinha que tirar o gosto daquilo com a língua, mas obedeci. Fui linguando no meio da ruivagem, lingualinguando as intimidades, lingualambendo as partes todas até que Hilda me prensou as orelhas dentro das coxas enferrujadas, deu um suspiro tamanho do mundo, arqueou as ancas pra riba levantando junto minha cabeça, boca, língua. Nessa hora minha língua sentiu um sabor de cândida doce entrando pela boca e descendo goela abaixo. Pego de surpresa, só me faltou engasgar, mas não era gosto ruim não! Foi gosto do bom. De verdade nem era doce, mesmo assim era melhor que isca das rapaduras do pai. A escandinava desfalecida na palha do milho, nem percebeu que eu desconhecia os procedimentos posteriores. Apeei do paiol, assuntei em volta e fui para casa. Sucedeu que depois desse dia, sempre que Hilda me pegava campeando sozinho perguntava se eu queria botar língua na paçoca dela. Era eu fazer cara de acanhado pra ruiva cuidar em volta, se acercar que não tinha viva alma perto do paiol e chispar pra lá. Eu sungava o cós do calção e ia na cola.

13 julho 2012

UMA ADAGA NO VÃO DA PUPILA

 

“Não é o mais forte que sobrevive,
nem o mais inteligente,
mas o que melhor se adapta às mudanças.”
- Charles Darwin

Eu vejo um velho no espelho, um velho interno, dentro de mim. Consigo enxerga-lo pelo vão de pupilas cansadas das intempéries da vida. Esse velho sobreviveu a várias rotações em torno do sol e a milhares de translações sobre si mesmo, morreu tantas vezes que só ele pode dizer quantas. E todas as mortes foram iguais. Ferido por uma adaga. Por isso, ele se obriga a ostentar essa aparência de forte, apesar de não ser nem mesmo inteligente.

O velho não sou eu. É a alma que agora me habita. Eu digo agora, porque já foram tantas, a julgar verdadeiros os presentes que amigos, familiares ou desafetos, em algum momento me ofertaram. A primeira pessoa a me presentar uma alma, foi minha avó materna. Deu para mim uma alma boa. Eu ficava procurando por essa alma em mim, mas não sabia ainda que deveria olhar no vão das pupilas. Essa foi sucedida pela alma de artista, presente de uma professora no primário. Depois minha vida ganhou um espírito cigano... esse eu matei e durante bom tempo me habitou um espírito empreendedor. Espíritos brincalhões são presentes constantes, coisas de amigos mais queridos. Até mesmo um espírito de porco me habitou, era tão perfeito que cometeu suicídio. Agora me habita esse espírito velho! Ele está inquieto e por isso veio espiar comigo seu reflexo no espelho. Eu me pergunto se já houve em mim espírito mais belo que ele. Depois me calo, quero dizer, paro de pensar para que o velho não saiba que já me habitaram tantos espíritos inquietos que nem sei dizer qual foi mais belo. Porque a beleza do espírito está na inquietude. Exatamente por isso tenho essa mania de assassinar espíritos domados. Cada vez que o vão das pupilas revela a quietude morna de um espírito calmo, eu lanço uma adaga e firo de morte a alma sedentária que em mim habita. Na morte desta, nasce uma nova inquietude e vou me renovando indefinidamente. Mas este último não se aquieta, o que me fez desconfiar que fosse o mesmo, velho e único espírito que já tive. Ele está adaptado a mim e nunca morreu de verdade. Aprendeu a ludibriar minhas adagas, ou a mentir que elas feriam. Decerto riu todas as vezes que pensei tê-lo matado... E se morreu alguma vez, ressuscitou. Sua inquietude, agora, vem da falta de adagas arremessadas. Há muito não o firo - desde que a sinceridade de todas as mortes se tornou duvidosa, e isso deve incomodá-lo mais que a mim.

Esse velho é realmente o mais belo, admito num pensamento dentro de outro pensamento que está escondido num terceiro para borrar a resposta a minha pergunta. Sim, essa minha alma é bela em suas inquietudes e atuações dramáticas de falsa-morte! Porém, rir todas as vezes antes de morrer não foi inteligente, já que eu posso feri-la de fato. E para isso nem preciso ser forte... Só preciso cerrar os olhos, fechar o vão das pupilas.

12 julho 2012

POSTIGO NUM DESAMOR QUALQUER

Antes, eu era capaz de expressar em letras os meus desertos e suas dunas imensas, hospedeiras de pequenos oásis. Ontem eu conseguia revelar as florestas tropicais em mim, onde arbustos e velhas árvores abrigavam pequenas clareiras de folhas velhas, decompostas e úmidas. Discorria sobre veredas que conduziam a penhascos suicidas, de onde eu atirava torrões de terras num rio caudaloso. Com palavras eu podia dizer desse meu lago interno, profundo, sereno, frio. Dizer das cachoeiras, das vertigens, dos céus em minha mente ou dos abismos em meu peito. Podia ainda abrir um postigo e mostrar o que havia de grandioso, fulgurante e solitário em mim. Sim, em algum momento, já mostrei a você o astro amarelo aquecendo areias de uma praia vazia, onde pés descalços imprimiam rastros da fome que ardia em meus olhos. Com a escrita eu poderia mostrar meu coração, sangrando numa bandeja de prata, posta sobre pedra escura, sendo oferecido ao ser alado.

Vê? Agora, já não é preciso lápis, papel, palavras. Tuas memórias conseguem reproduzir tudo que havia em mim... E tu vês o voo rasante sobre minhas copas. Ouves o som das ondas. Ainda sentes a quentura da areia grossa, quase pedras que ferem, lancinam e onde estou quedo, desfalecido, qual moribundo sereno, fendendo em duas metades. Se estranhas teus próprios sentidos, e se aproximas, pela brecha no meu peito um espelho te revela, escancara tua face de vampiro consumindo meus desertos, florestas, rios, lago, pés, olhos e coração... Meu coração!? Este já não pulsa. Jaz dilacerado entre teus dentes e em pequenas fibras sangrentas. Então compreendes porque não posso mais revelar as paisagens em mim.

10 março 2012

FRANCO

Chuva na janela é convite para se molhar. Dois terços da classe eram mulheres e seis delas homônimos. Para não confundir, a chamada era pelo sobrenome: Franco? - que me passava sensação de veleiro branco num horizonte de tempestades - Presente! Na penúltima fila, tapando parte do quadro com seus cachos. Não incomodava! Eu gostava de assistir o ir e vir dos seus cabelos, cada vez que ela se ajeitava na cadeira a minha frente. Mar castanho encapelado. Era um céu carregado, de nuvens suspensas. Vento ponteiro. Na primeira semana foi pura agonia. Vontades, timidez, disfarces. Queria mais que dizer oi no início da aula e tchau no final. Arquitetava desculpas sonsas, mirabolantes abordagens até que, finalmente, no início da segunda semana, me veio alguma coragem. Pedi uma caneta emprestada. Devolvi sem nem soltar o obrigado que ficou engasgado, troncho, sufocando o discurso premeditado. Franco nem tchuns! Inocente do encanto que sua nuca me acendia, ela continuou seu ritual de fim de aula. Guardou livros, guardou cadernos, lápis e guardou também a caneta devolvida. Percebeu meus olhos fixos nela e me sorriu, como quem se obriga a ser gentil, depois fechou a bolsa, ajeitou a mecha de cabelos atrás da orelha e se foi. Velas infladas, vento de feição. Tchau. A tempestade tragando ventos, águas gritando nas venezianas e escorrendo pelos vidros. No final do bimestre a camaradagem dava licença para algumas ousadias, sentei ao lado dela na lanchonete e ajeitei sua mecha atrás da orelha, como ela sempre fazia. Franco - talvez incomodada, talvez não confiando na minha competência, talvez para deixar claro que ajeitar seus cabelos era tarefa exclusiva, talvez repetindo porque era hábito - ajeitou a mecha que eu havia arrumado e ficou calada. No final do intervalo não me esperou, voltou para a aula me deixando um sentimento de vento escasso, de barco à deriva. Chuva intensa, temporal na grama, vento e granizo. Numa aula qualquer - talvez economia, Franco se vira, ajeita os cabelos atrás da orelha e pede minha opinião sobre algo que nem lembro. Soltei duas palavras; "não sei" e emendei a pergunta que estava entalada. Não. Ela não estava brava, nem ofendida, nem magoada, nem triste. Não estava! Só guardava uma estranheza, uma emoção inusitada de eu lhe arrumar os cabelos assim, do nada. Prazer ou incômodo? - perguntei com receio. Acho que gostei – me respondeu e os olhos brilharam afastando um cinza sinistro. Meu coração em vórtice. Vento bóreas, um gigante das vagas, depois era noto. Fim da aula. Fim do oceano nos separando. Peito aberto num abraço amigo... e não houve tchau. Ela se foi. Simplesmente vento aparente até sumir pela porta. Fiquei sozinho, tremor nas mãos, sentimento frouxo de menino tomando garoa. Também fiquei mais próximo, mais íntimo, mais eu e ela. Nos inícios de aulas passamos a trocar beijinhos, no rosto, sem dizer oi. Nos intervalos falávamos da vida, do universo e de nós. Na saída outros beijinhos e um tchau. A tarde nos encontrávamos para o trabalho escolar, um cinema, um teatro, um shopping, um sorvete, um qualquer coisa e também para falar da vida e tudo mais. A timidez foi embora de vez. Mas veio uma vontade cada vez mais intensa de ficar com ela, abraçar, fazer carinho, contar estrelas. Mas e coragem? Franco parecia que também queria, mas no portão, no limite do tchau, apenas ajeitava os cabelos atrás da orelha e ia. Vento em popa. No horizonte tempestades. Chuva noturna, tromba d'água de dia. Eu me molhando inteiro a cada convite que a tempestade fazia. Franco se distraia num súbito de me fazer feliz e eu brincava de dizer que estava encantado. Não queria que fosse brincadeira, queria era retribuir, lhe beijar a ponta do nariz, pegar sua mão, andar de braço dado, ficar paradinho... de rosto colado. Não era apenas vontades de cama... Bem, era sim! - desejo imenso de permanecer junto dela e descobrir segredos da nau ancorada. Ela sabia, sei que sabia, mesmo assim desfraldava a polaca e se ia, entre tormentas e sombras. Às vezes ficava e falava da vida, do universo... Noutras apenas ajeitava os cabelos atrás da orelha. Decerto ela me via poita, somente um amparo na imensidão dos oceanos. Eu queria ser porto. Antes que cessassem as tempestades já era tempo de diplomas e cada qual foi para um lado, Franco num vento travessão e eu seguindo o ribombar d'alguma trovoada. Não soubemos nos seduzir. Agora que o sentimento é uma brisa de lenços brancos acenados em despedidas, percebo o que era tão óbvio - infortúnio cego. Eu era calmaria... Franco, temporal.

17 fevereiro 2012

IMENSIDÃO

Eu queria começar esse texto dizendo que estou sentindo falta de um homem. Mas isso poderia suscitar pensamentos maliciosos no meu leitor. Não tenho nada que antecipar o assunto pra dar satisfações, mas também não posso simplesmente deixar que abandonem a leitura no primeiro parágrafo pensando que eu estou saindo do armário. Não, eu não estou dentro de armário algum e espero que não estejam ávidos por revelações que nem existem.Estou apenas sentindo saudade dos homens da minha vida. Minha filha agora tem aulas de natação toda semana. Dia desses estava ajudando-a no ritual de vestir maiô, touca, óculos, pegar toalha, roupão, chinelo, eteceteras e ela quis saber se eu tivera aulas de natação quando menino. Respondi que não. Sem pensar. Depois pensei que tivera sim, uma aula apenas. Meu avô paterno percebeu meu receio ao entrar no córrego, perguntou se eu sabia nadar e, diante da negat iva, disse que nem precisava aprender. Bastaria eu engolir um lambari vivo para nadar feito peixe. Era um dos homens de minha vida, não tinha porque duvidar. Pegamos um pobrezinho e não me lembro de ter feito caretas enquanto o engolia, sem mastigar. Nem bem fechei a boca já fui atirado por meu avô no lado fundo do córrego. Ele era um homem enorme, forte, e falava grosso, rouco. No meio do espanto ouvia seus rugidos ordenando que eu batesse braços e pernas. Não sei se foi por necessidade ou por medo de desobedecer a ordem. Sei que, após engolir alguns goles de água, eu me vi na margem salvadora. Procurei meu avô e ele não estava onde eu pensei que estaria, levei o maior susto quando percebi que ele estava dentro d'água. Compreendi que entrou na água, completamente vestido, para me salvar caso eu não conseguisse nadar. Eu consegui. Nunca mais parei. As lições eram assim, às vezes rudes, noutras não. Meu pai me ensinou a jamais maltratar um animal doméstico. Meu tio ensinou a empinar pipas e outro tio, este materno, teve paciência para me ensinar a desenhar e depois a conquistar meninas com minhas habilidades artísticas. No padrão da época todos me diziam a mesma coisa, nunca levar desaforos para casa, mas numa briga jamais bater em quem estivesse caído. Estes foram homens de grande importância em minha vida, e eram assim, unidos. Todos, sempre juntos, protegendo suas crianças. Uns mais sisudos, feito meu pai, outros mais moleques, feito o tio materno. Meu avô era um misto de todos eles, as vezes interrompia uma brincadeira do nada e se insistíssemos dizia rude: arreda! Ai a brincadeira parava em definitivo. Meus homens. Cada qual me proporcionou uma estreia na vida, um primeiro passo rumo a me tornar o homem que sou. Meu avô ainda me deu uma ultima lição. Foi com ele que aprendi a dizer adeus para sempre. Depois, um a um, todos se foram e eu sinto saudades. Herdei traços físicos e de personalidade. Herdei também a obrigação de indicar o bom caminho aos meus filhos, aos sobrinhos. Sinto-me responsável em transmitir tudo que aprendi com os homens de minha vida. Sinto-me guardião de cada criança da família e, muitas vezes, tenho a impressão que estou parecido com o meu avô. Devo reconhecer que tenho muito mais que gostaria do jeitão do meu pai. Sou agora um homem feito, meu filho é um homem!, poderia dizer que já tenho idade para ser avô. Porém, a verdade é que eu sou apenas o filho mais velho, o tio mais velho, o pai.... É assustador para quem se sente tão só com inúmeras perguntas ainda não respondidas. Mais do que nunca, sinto falta de meu pai, do meu avô, ou um de meus tios. Sinto falta de pelo menos um desses homens ao meu lado. Era isso, só isso que eu queria dizer, leitor. E creia-me, é muito difícil para um homem expor suas imensidões.

14 fevereiro 2012

INSUSTENTÁVEL

Justine. Esse é o nome que imagino para ela, a mulher que eu amo e sonho encontrar uma noite qualquer, talvez em Paris, quem sabe em Itaquera. Após La Nouba, no Cirque du Soleil ou num show desses que vendem ingresso pela metade do preço e anunciam seus horários em muros de periferia, caminho de ônibus e vans circulares repletas de público cansado de horas extras. Justine ou Carine. Carine... Essa mulher teria um dom, um poder ou talento especial que a tornaria única no mundo inteiro. Talvez fosse pianista, bailarina, poetisa ou cozinheira. Ela me encantaria pelos olhos grandes, castanhos ou esverdeados. Quando sorri aparecem duas marcas de expressão nos cantos dos lábios e uns dentes corretos. Os cabelos são lisos, castanhos claros, curtos. Em cada uma das orelhas tem apenas um furo com um brinco de argola. Douradas. Ela sorri quando me vê e seus olhos parecem que fecham, posso apostar que é puro contentamento. Alegria com um misto de ansiedade desfeita e coração calmo de me ver inteiro, salvo, livre, ao alcance de suas mãos, abraços, beijos. Ela fecha completamente os olhos quando percebe que vou beijá-la. Aline é o nome dela. Aline é melhor que Justine ou Carine, sim, ela se chamaria Aline. Ela diria, olhando em meus olhos, que jamais teria coragem de me deixar. E eu diria que seu nome é doce de ser pronunciado através de minha boca. Diria isso porque sou péssimo para retribuir demonstrações de amor, porque não sou romântico, porque diante dela eu não teria boas palavras para dizer. Talvez eu respondesse apenas seu nome. A-li-ne! Eu diria separando as sílabas, a mão correndo por seu corpo enlaçando sua cintura. Ou então o ar sairia quente dos pulmões e a língua estalando duplamente, uma vez no céu da boca e outra nos dentes, deixando escapar seu nome, A-LI-NE... E seria meu último sussurro antes de segurar mansamente sua nuca e pousar meus lábios nos seus, desfazendo o sorriso grande de dentes corretos. Sons de violinos escapam de algum lugar indeterminado, ou seria novamente minha imaginação pregando peças? Aline existe apenas na minha mente cansada de horas extras. Uma mulher como ela não é possível e a realidade é que estou sozinho, me protegendo da garoa, esperando ônibus. Apenas isso. Não! Olhando bem tem mais alguma coisa! Do outro lado da rua, um cartaz colado no muro anuncia uma peça. METADE DO PREÇO! A oferta está em letras garrafais, ganhando mais destaque que o nome da atriz principal. Darlene é o nome dela. O sobrenome foi rasgado, arrancado junto com o resto do cartaz. Algum insensível... atualmente as pessoas estão menos românticas. Eu sussurro parte do seu nome: Le-ne. Eu posso jurar que são dois estalos com a língua, um súbito e outro ricocheteando gentil no céu da boca... E se faz silêncio! Ainda não me arrisco a repetir seu nome em voz alta.

11 fevereiro 2012

FAMÍLIA DE NOVELA


Eu soube assim que o telefone tocou. A campainha toca igual todas as vezes, mas algum alarme interno zumbiu junto com o alarme do telefone. Alguém pode dizer que é alma do ente querido passando para se despedir da alma que habita o nosso corpo... mas eu não acredito em nada disso! É besteira! Eu soube porque ninguém liga na casa dos outros após a meia noite, para dar notícia boa, pra dizer que ganhou na megasena acumulada. Meu irmão estava bonito. Eu nunca tinha visto ele tão bonito assim. Por mais estranho que possa parecer, ele estava com as mesmas feições de quando eu esmurrei a cara dele por causa de algumas pipocas. Sim, pipocas, dessas de milho estourado! Eu estourei a cara dele... mentira, foi só um soco no nariz, que ficou sangrando e a mãe colocou um chumaço de algodão pra estancar a hemorragia. Nem quebrou. Ele quis que eu dividisse minhas pipocas com ele, quando recusei deu um tapa em minha mão. As pipocas se espalharam pelo chão e eu juntei meus dedos, fechei a mão e dei a porrada. Deve ser o chumaço de algodão no nariz que me fez lembrar desse episódio. Minha cunhada chorou. Choro de mentirinha! Ela estava separada dele pela oitava vez. Separou e voltou umas três vezes só no último ano. Agora está livre do traste de uma vez por todas. Porque meu irmão, como marido, era um traste, sim senhor. Não é depois de morto que ele vai virar um santo, o padroeiro dos casamentos felizes. Era um safado, vivia botando cornos na minha cunhada. Quantas vezes eu não tive que aplacar as angústias dessa coitada. Quando separava dele corria pra onde? Lá pra casa. Eu dava abrigo e comia. Minha cunhada é bonita, eu tinha que comer. Ela ficava uma semana, duas e depois voltava pro meu irmão. Saudade do filho é complicado. Toda vez que ela dizia que ia embora, meu irmão rebatia que ela podia sair e nunca mais voltar, só ela! O filho ficava. Agora está feita! Vai herdar a casa, o carro, metade da transportadora e alguns caraminguás depositados no banco... ainda tem o seguro, a pensão e essas coisas todas. Acho que nunca mais vai querer dar pra mim! Coitado do meu sobrinho, quero dizer, depende do ponto de vista! Em todo caso é mais um que vai crescer sem figura paterna por perto. Tomara que a última visão, a lembrança que fique para ele, seja essa que eu tenho agora diante de mim. O pai rodeado de flores, bonito. Porque meu irmão até que ficou um defunto bonito. Só o vi bonito assim no dia em que se casou, da primeira vez, que foi a única que se casou de verdade. Os outros casamentos todos foram ajuntamentos. Inclusive com a atual, a viúva, essa que vai herdar tudo. Porém, meu irmão registrou o filho com ela. Filho é o que mais vale pra efeitos de herança. As outras mulheres todas, pelo menos meia dúzia de viúvas, vão ficar chupando o dedo. O defunto tinha sorte com mulher bonita. Uma mais gostosa que a outra. Dizia que tinha aversão a filhos, mas o que ninguém sabe, nem minha mãe, eu acho, é que o traste do meu irmão fez dois outros filhos em mulher da vida. Uma menina e outro menino! O menino mora com a vó, uma senhora que não pode nem ouvir falar no nome da filha, largada no mundo. Eu já fui lá procurar saber da mãe desse meu sobrinho bastardo, mas quase saio com a cabeça rachada. Já a mãe da Ritinha, minha sobrinha bastardinha, eu sei bem onde mora. Ela ainda não sabe que perdeu o pai de sua filha. Quando aparecerem por lá cobrando o aluguel atrasado ela vem me procurar. Vem tirar satisfações, igual veio todas as vezes em que precisou falar com o safado do meu irmão. Ela sempre envia recados através de mim. Eu que não sou besta, só passava a informação adiante depois que ela dava pra mim... isso mesmo! Puta. Puta pro resto da vida. Não tem essa de ex-puta. Vadia quando convém arria as calcinhas sem nem pensar duas vezes. É só precisar que troca sexo por favores. Daí eu vou comer ela e só depois dizer que o meu irmão morreu. E morreu tarde! Ia desgraçar a vida de mais alguém se ficasse mais tempo entre os vivos. Ninguém vai falar no assunto agora, mas nosso pai morreu sem falar com meu irmão. Dezoito anos sem falar com o próprio filho! E por que? Porque meu irmão era safado! Roubou o próprio pai, pegou procuração pra vender umas terras lá em Sorocaba e nunca repassou o dinheiro. A casa, o carro, a sociedade com o Laerte na transportadora e mais uns caraminguás que tinha no banco? Tudo fruto de passar a perna no próprio pai. A mãe já era separada do pai quando meu irmão deu o golpe, ela achou foi pouco porque nosso pai tinha dado o golpe nela durante o divórcio. Ficou com mais do que tinha direito e ela saiu só com o sobradinho da vila Nhocuné. Teve que costurar pra se manter e o velho, meu pai, tinha uma fortuna no caixa dois. Pagou apenas salário mínimo de pensão alimentícia até o dia da morte. Depois que eu me apossei de tudo que era do velho, já que ele fez questão de colocar os bens todos no meu nome em usufruto dele, - não ficou nada pra nova esposa e meu meio-irmão caçula - eu dei um dos apartamentos pra minha mãe. Também dei como usufruto, escritura em meu nome. Prevenção, porque na minha família ninguém presta... Ainda bem que não tenho irmãs. Imagina o que seriam? Tudo puta! Mas agora que meu irmão morreu dá pra recomeçar, limpar o nome da família, comprar algum título em clube familiar, frequentar festas distintas, enterrar essas histórias todas, esquecer os filhos ilegítimos... Só acho difícil parar de comer minhas ex-cunhadas. Isso eu não garanto.

06 maio 2011

BULINDO COM O PASSADO

Surgiu do nada, na mesma calçada, felina, simulando que andava em direção oposta a minha. Parou dois passos antes de nos cruzarmos, sorriu um excesso de batom e levantou a saia mostrando as ancas branquelas:

- Vamos fazer neném meu bem?

Lembrei a Firmina, mãe da Rosa, ofertando as coxas roliças abertas e nuas. Rosa dormia no berço plantado na penumbra do quarto minúsculo e Firmina trabalhava. Moço, desejos em formação e ainda acertando o cabresto nos pudores, eu pagava pelo prazer que obtinha dentro das coxas da mãe solteira. Por vezes o bebê acordava e me esquadrinhava num vigiar redondo, mesmo quando vestido eu me sentia nu. Baixava a cabeça incapaz de sustentar o peso daquele olhar e ia embora, querendo nunca mais voltar para o meio das coxas redondas da Firmina.

Nunca ouvi choro, resmungo ou riso saindo do berço onde Rosa estava plantada.

Nunca lhe dirigi um carinho, uma graça, um guti-guti. Nada. Não me atrevia, ou não deu tempo. Antes que a menina aprendesse a falar o avô veio buscá-la. Arrancou Rosa dos panos puídos e a levou. Não se importou com o rasgo feito no peito da filha, a Firmina de coxas roliças. Não dei razão a nenhuma das partes e continuei apartando as coxas de Firmina. Meus desejos de moço pungiam o meio das coxas que foram afinando, afinando e deixando de ser as coxas de Firmina. Afinou tanto que Firmina também deixou de ser Firmina. Cada um na vila tinha uma opinião, se um dizia que foi moléstia, outro dizia que foi desgosto... disseram que foi um monte de coisas, só eu não disse nada. E talvez fosse o único que soubesse a verdade. Tinha sido de rasgo no coração. Rasgo que só a presença de Rosa, plantada no canto do quarto, poderia costurar.

- Então, vamos fazer neném?

Retornei da viagem ao passado e recusei com simpatia, mantendo olhos gulosos na curva murcha dos seios brancos. Eu não queria um filho parecido com Rosa! Flor brotando na fenda da guia e fixando raízes na calçada!

A mulher insistiu, me pegou a mão, chamou de meu bem, regateou no preço e eu pensava em Rosa sem mãe lá na vila, "Já é moça feita! Deve ter um belo par de olhos redondos". A felina ajeitou a saia, fez um muxoxo de desprezo e se foi. Eu não me importei. Devidamente cabresteados meus desejos já seguiam a trote curto os pensamentos que estavam em Rosa... "Deve ter coxas roliças, igual a mãe".

23 maio 2009

LENDAS DA MADRUGADA


Pensei ter esboçado um sorriso e, pior, ter deixado escapar "Prazer, Teseu!", imediatamente após ela abrir os lábios e soltar por entre a fileira de dentes, "Ariadne".

Apenas sorri. Não disse meu nome. Se a moça soubesse as lendas dos deuses e heróis gregos - o que não seria difícil, poderia soar como uma insinuação de que em nossos destinos já éramos amantes. Nem inventei um codinome, apesar de parecer grosseiro. Da portaria o Minotauro observava todos meus movimentos, e eu os dele. Possivelmente eu era o único que usava jeans e tênis no local, motivando atenção especial do segurança. Que observasse!



A boate bem poderia ser chamada de labirinto, com seus quartos, corredores e reservados onde a fome de semideuses era aplacada entre gemidos e sussurros. Deixei o Minotauro fazer seu papel e voltei toda minha atenção para Ariadne, que tecia seu novelo exibindo dengos, curvas e meneios. Pernas longas, pescoço fino, cabelos fartos, seios pequenos e cintura à mostra. Ela dominava bem as artes da sedução, hábil tecelã. Perguntei seu preço já querendo me rebelar contra Minerva se esta me interrompesse os sonhos ordenando que abandonasse Ariadne. Seu preço, sussurrado como se fosse um segredo explicava as perfeições das moças, dos tapetes, das bebidas, dos meus iguais metidos em ternos e da preocupação do Minotauro que ainda duvidava de minha sinceridade, ou possibilidades financeiras, e não tirava os olhos dos meus tênis.

Ridículo me confrontar - pensei, eu já o vencera em batalhas passadas e o venceria novamente. Eu me deitaria com Ariadne (era o destino se repetindo através dos séculos?).

"Por esse valor, quanto tempo você fica comigo?" - perguntei comparando o castelo de Dédalo com os inferninhos onde eu gastava poucas moedas a cada meia hora.

"Três horas. Mas se ultrapassarmos o período podemos negociar". Era até covardia jogar com cartas marcadas, mas mesmo assim brinquei com as possibilidades de enfurecer o segurança. Demorei-me no flerte com Ariadne, beijei sua nuca, apalpei os seios descaradamente, aqueci as mãos entre suas coxas e o final foi como deveria ser. Ela me entregou o novelo e eu entrei no labirinto.

Já estava escrito que o Minotauro seria derrotado e Ariadne abandonada na ilha de Naxos. Afinal, Tróia e Helena me esperavam num futuro repetitivo.

18 maio 2009

JOANA

- VACA!!!

Xinguei e dei o tapa com raiva, mas não ouvi o estalo emitido pela palma da minha mão. O som breve e seco foi levado para o inconsciente e nalgum lugar da mente, meus sentidos despertaram um prazer antigo, gozado ainda menino, todas as vezes que papai matava porco no sítio.

Para os moleques da família o pernil suíno tinha a mesma consistência e volume dum corpo adversário, excelente para treinar os golpes certeiros, decisivos, daqueles capazes de definir uma luta na saída da escola. Por isso, enquanto esperava que os homens da casa retalhassem as carnes, separando gorduras, ossos e couro, o traseiro de porco, pendurado num dos galhos da mangueira, substituía as fuças dos inimigos imaginários - apanhava pelo Pedrinho, aquele fidumaégua. Meus primos treinavam murros e também me ensinavam a fechar a mão corretamente na hora de socar. O polegar devia firmar os demais dedos, os cotovelos levemente abertos e os ombros posicionados. O punho esquerdo servia para tirar a atenção do adversário enquanto o soco direito era arremessado forte, sem dó! Mas esmurrar o pedaço de porco não era meu passatempo predileto. Eu peguei gosto mesmo em estapear o quarto traseiro de suíno. A palma aberta, os dedos juntos, levemente arqueados para emitir som, a mão elevada pouco acima da orelha direita e sendo desferida num ângulo reto, descendente. Uma obra de arte! Eu tinha jeito pra coisa. O tapa saia forte, o estalo doía na palma e a mão gozava, sentindo o tremor da carne gemendo, se abrindo e acomodando a agressão. Eufórico, recepcionando no tato o frio estremecer do couro esbranquiçado a cada golpe desferido, eu batia, e batia, e batia.

O rosto branco da Joana estampava os contornos dos dedos e os vincos da minha mão. Era a primeira vez que eu batia numa mulher. Olhos arregalados ela ainda estava assimilando a agressão quando repeti o tapa. Eu nem lembrava mais o motivo da raiva, do xingo e do tapa inicial. O prazer tomara posse de mim e sobrepujara todos sentimentos e emoções quando minha mão afundou na carne quente, macia e aconchegante pela segunda vez. Dessa vez sem xingo! Só para confirmar que a cara da Joana era incrivelmente melhor de se estapear do que a bunda fria de um leitão. Redescobri algo em que eu era bom, eu ainda levava jeito. Eu quis, até pensei em repetir, sentir novamente a mão estalando gostoso na bochecha morna da Joana, mas não tive tempo.

- VACO!! - e a mão espalmada encheu minha cara de estalo, dores e calores.

Joana reagiu mais por susto. Estava tão surpresa, agoniada e assustada quanto eu, mas acredito que não foi a dor, nem a coragem, que a fez devolver o tapa e o xingo. Foi sua dignidade. Ela tinha essa coisa de equivalências, direitos iguais, dente por dente ou olho por olho. Tudo para ela tinha que ser nas mesmas condições... Mas eu já tinha pegado gosto! Durante um bom tempo, mesmo sabendo que Joana ia retribuir, eu metia a mão na cara dela.

12 maio 2009

PACOTE - Uma história de amor

Nas minhas lembranças de infância papai sempre foi sisudo, sistemático ao extremo. Seu sorriso era uma dádiva rara que desde cedo aprendi a associar a alguma conquista que ele, automaticamente, transformava em guloseimas e compartilhava com os filhos. Sabia ser bom pai para seus sete filhos, só não sabia sorrir com freqüência. Por isso, quando lançava seu riso maroto seus herdeiros retribuíam risinhos à espera de doces, biscoitos ou qualquer outro mimo que certamente ele trazia escondido no paletó.

Eu devia ter entre sete e oito anos de idade quando papai chegou em casa com um pacote pardo nos braços e um sorriso nos lábios. Quase que de imediato as sete bocas infantis salivaram gulosas ao redor do pacote depositado sobre a mesa. Mas para surpresa geral o embrulho se mexeu. “Algodão-doce vivo?” — juro que foi isso que pensei no primeiro minuto de surpresa. A expectativa durou poucos segundos, foi só o tempo do latido ecoar pela casa para eu e meus irmão explodirmos num misto de risos e gritos. Se o próprio fez o favor de estragar a surpresa, não estragou a satisfação do meu pai que retirou o filhote de dentro do saco de papel e passou de filho em filho até todos os pares de olhos e mãos estarem certificados de que havíamos ganhado um cãozinho. Cachorro de verdade! O nome? Não encontramos nada mais apropriado que Pacote. E Pacote ficou.

No início o filhote latia por nada, era teimoso, bagunceiro, tão criança quanto eu e meus irmãos. Já na primeira semana mamãe se aborreceu com a novidade e sentenciou que por ela o Pacote retornaria ao seu lugar de origem. Só não foi devolvido porque sete crianças convencem qualquer mãe a aceitar qualquer coisa, até um filhote de cão. Mamãe nunca foi uma mãe qualquer, mesmo assim cedeu. Impôs uma condição: cachorro dentro de casa, jamais! Depois que o Pacote ficou adulto latia apenas o essencial para dar algum aviso. Acredito que reservava suas energias para as crianças da família, pois brincava por quanto tempo agüentássemos.

Atento a nós e ciente de suas responsabilidades, desde cedo mostrou ser guardião diligente, jamais deixou um estranho ultrapassar os limites da porteira. Quem quisesse entrar que chamasse e aguardasse permissão dos donos da casa. Uma única vez, apesar do tanto de estranhos entrando e saindo de nossa casa a noite inteira, deitou-se e guardou silêncio. Pareceu entender que sua família perdera um ente querido e que dessa noite em diante, apenas seis crianças fariam parte da algazarra diária. Lembro de mamãe esgotada de dor dormindo no sofá, papai permitindo que meus irmãos fossem dormir na casa de vizinhos, Pacote em vigília ao meu lado assistindo papai chorar pela primeira vez. Depois dessa noite papai não me pareceu tão sistemático quanto antes e concluí, numa ingenuidade própria de menino, que se um homem chora diante do seu cão não tornará a ser o mesmo quando lhe secarem as lágrimas.

O Pacote ficou na família por mais de dez anos. Foi companheiro fiel de cada um dos integrantes e o primeiro a contestar a lei da física. Só assim para explicar a fórmula que permitia ele estar com todos ao mesmo tempo. Mamãe precisava pegar um frango? Pacote estava correndo sobre o galináceo escolhido e o segurava, sem machucar, até que recebesse a ordem para largar. Papai devia ir à cidade buscar sal, querosene ou arame? Pacote era companhia imediata. A segurança dos filhos até a escola rural era garantida pelo cão. Nenhum ser vivente se atrevia a cruzar nosso caminho. Nem mesmo um calango! Certa vez defendeu-me de um menino que tentou roubar meu álbum de figurinhas quase completo do campeonato brasileiro. Noutra, despachou um pretendente que tentava abraçar minha irmã. Esse episódio virou lenda familiar, principalmente porque minha irmã se casou com o despachado: “primeiro teve que pedir a mão dela ao Pacote”. Não precisava morder, bastava arreganhar os dentes e rosnar para que qualquer um mudasse a prosa e o rumo. Nem era tão grande, só que sabia impor respeito. Também sabia respeitar. Com ele só se ordenava uma vez. Nas noites de julho e agosto ele se aninhava ao pé do fogão a lenha, buscando um pouco mais de calor para combater o inverno mineiro. Era a única época que dormia dentro de casa, nos demais meses do ano seu lugar era ao relento, condição imposta desde os primórdios pela dona da casa. Ele aceitava sem reclamação.

Eu me tornei adolescente e o Pacote envelheceu. Tão despretensioso como chegou e viveu, ele se foi. Não sofreu, não deu trabalho e nem chance a veterinário algum. Não gostava que lhe botassem as mãos, permitia aos adultos da família algum carinho na cabeça, mais nada, saia de perto se insistissem. Mas as crianças podiam tudo, até lhe fazer de cavalo... Era noite de verão, porém, como ninguém da família se dispôs a lembrá-lo a única regra da casa, o Pacote dormiu aos pés do fogão. Na madrugada, quando mamãe quis reavivar o fogo ele simplesmente não acordou. Pela manhã enquanto cavava um túmulo no quintal meu pai, que ainda era um tanto sisudo, chorou pela segunda vez. Sobre a cova, por falta de flores, eu plantei uma rama de batata-doce. Os meses passaram e a pequena rama se espalhou pelo chão e deu tantas batatas quanto poderia. Não lembro se foi assim, mas me pareceu que para cada batata-doce que rachava o chão papai soltava um comentário engraçado até os sorrisos se tornarem freqüentes e sua circunspeção sumir totalmente, no entanto, permanecemos fiéis à memória do nosso cão e todas batatas se perderam na terra. Ninguém da família teve coragem de comer batata-doce do Pacote, como chamávamos.

Assim, os meses se transformaram em anos, os anos em recordações e as recordações em vestígios. Dos integrantes da família, apenas papai e mamãe moram na mesma casa. Talvez eles não se lembrem, mas sempre que os visito vejo o monturo de terra marcando o local onde o Pacote foi enterrado. Das batatas não resta uma só rama. Sei que com o passar dos anos quase tudo daquela época vai se apagar na minha memória, minhas recordações vão se perder como papai perdeu sua sisudez — sem que eu me apercebesse, e essa história quero manter viva, escrita, impressa em algum lugar como sendo minha melhor lembrança de amor e fidelidade.

09 maio 2009

CALOTEIRO

Semana do meu casamento. Estava cheio de compromissos e ainda faltava comprar alguns móveis. Na verdade ainda estava com todos os eletrodomésticos por comprar. Foi neste clima de ansiedade e aperto que recebi uma proposta inusitada. Veio do Gérson, um colega de trabalho:

- Se você quiser, podemos fazer uma troca. Eu compro todos os eletrodomésticos que faltam na sua casa, e mais alguns que você nem pensava comprar, e você me dá sua moto.

- Como assim? Os eletrodomésticos custariam bem mais que minha moto!

- Tudo bem. Eu fico com o prejuízo.

- Bebeu?

- Fica como se fosse o meu presente de casamento. É pegar ou largar...

Peguei.

No dia seguinte fomos às compras. Eu, a futura esposa e o bom samaritano. Geladeira dúplex, fogão seis bocas automático, videocassete, televisão 29polegadas, aparelho de som, lava-roupas, secadora, microondas, lava-louças e até uma TV 14polegadas para deixar no quarto. A conta final excedeu em quase três vezes o valor da moto. Protestei:

- Pô Gérson, ficou caro demais. Não posso aceitar!

- Podemos deixar a TV 14polegadas, a lava-louças, o microondas e a secadora... - a futura esposa, barrigudinha de seis meses tentou ajeitar as coisas.

- Nem pensar! Vocês escolheram e vão levar tudo.

O amigo, a essa altura quase um irmão, não estava disposto a regatear e como diziam meus avós: "em cavalo dado não se olha os dentes"'. Aceitamos. Aquele surto de loucura poderia passar, mas se depois de algum tempo ele viesse reclamar eu pagaria metade das prestações. Sim. Tudo foi financiado em várias prestações, porém, como o salário dele não era maior que o meu cada um dos objetos rendeu um carnê de crediário distinto. Cada eletrodoméstico foi adquirido numa loja diferente.

A festa foi pequena. Gente pobre tem mania de reunir amigos e parentes em torno de um evento e chamar de festa. A alegria foi enorme. E a casa? Completa. Não faltou nenhum aparelho de utilidade doméstica. Os utensílios pequenos ficaram por conta dos parentes. Desde a panela de pressão até o tapetinho na porta de entrada, tudo veio de presente. Só em copos ganhamos dezoito jogos completos! Duas semanas depois do casamento o Gérson bateu na porta de casa. Atendi já fazendo cálculos e contas, conciliando parte das prestações com o salário que eu tinha na época. Mas ele estava sorridente. "Muita calma - pensei - espere que diga a que veio". Relaxei e esperei a ladainha. O visitante ilustre conheceu a casa, ouviu umas músicas no aparelho que ainda tinha muita prestação por vencer, assistiu os melhores lances do Corinthians na TV. Abriu várias vezes a geladeira duplex em busca de cerveja estupidamente gelada, e só então me convidou para conhecer seu carro novo, estacionado na frente da minha garagem. Fiquei surpreso ao ver o modelo zero quilometro.

Eu ainda estava em férias, talvez o Gérson tivesse ganhado uma promoção, ou então ele tinha ganhado uma bolada na loteria, ou estava metido com aqueles elementos da rua de baixo, ou... Eu quis saber de onde tinha vindo tanto dinheiro e ele não se fez de rogado:

- Pedi para ser demitido na semana do seu casamento. Peguei o FGTS, juntei com os direitos trabalhistas e deu uma boa grana. Boa parte eu dei na troca da moto por esse carrão.

- Arrumou outro emprego? - perguntei só para disfarçar minha inveja.

- Que nada. Estou de saco cheio de São Paulo. Volto amanhã para minha terra e por isso passei aqui, para dar um tchau. Não queria ir sem me despedir de você, meu colega de serviço, um puta amigo que me ajudou muito quando cheguei em Sampa.

Comovido com a demonstração de amizade eu quis esboçar um comentário, mas o Gérson não permitiu que o interrompesse e continuou:

- E também quero pedir um favor; se alguém perguntar onde estou, qual é a cidade que meus pais moram ou coisa parecida, diga que não sabe. Segura essa?

- Tudo bem, mas por que esse mistério?

- Algumas pessoas vão me procurar e não quero ser encontrado.

Pronto! Estava envolvido com os tais elementos da rua de baixo.

- Porra Gérson! Como você foi se meter nessa enrascada?

- Do que você está falando?

- Estou falando de você se envolver com traficantes.

- Bebeu? Eu estou limpo. Não me meto com bandido não!

- Então está fugindo do quê?

- Dos cobradores! Casas Bahia, Pernambucanas, Lojas Marabrás, Kolumbus, Extra... Todo mundo levando calote.

- Caralho!!!

Não é incomum que um homem converse com outro homem falando palavrão para mostrar que é homem, mas nem era esse o caso. O palavrão foi a única coisa que consegui dizer quando entendi a situação.

Ele ficou um bom tempo passeando de carro novo e fazendo sucesso com as conterrâneas, lá no nordeste. Depois vendeu o carro e juntou toda grana que tinha para montar um boteco na beira da praia. Dois anos atrás, quando os protestos/SPC-SERASA caducaram, ele me escreveu dizendo que ia deixar o pai cuidando do bar e voltar para São Paulo. Sujeito bom de conversa, boa aparência e ficha limpa na praça, não demorou muito para encontrar um bom emprego com um bom salário. Mora do outro lado da cidade e faz questão de manter a nossa amizade, por isso aceito seus convites para almoçarmos. Conversamos, bebemos, rimos e sobre o calote nem um pio. No último encontro, na saída do restaurante, olhou meu carro como se fosse um comprador e perguntou com sincero interesse:

- Você não está precisando trocar seus móveis?

Entrei no carro e fugi antes que a tentação me fizesse responder que sim
.

15 fevereiro 2007

ARROZ SEM FEIJÃO


- Trinta e sete reais e quarenta centavos. Isso já paga tudo que te devo né?

- Endoideceu homi? Lógico que tem troco. Tira aí dos cinqüenta e vê quanto você ainda me deve!

- Você quer ver o meu oco! - ele resmunga sabendo que ela tem razão.

- Tô fazendo é muito por você! O aniversário é do teu filho e eu nem devia descontar da pensão.

- Ajeita tudo nesses sacos e vamos embora.

Zé Comum e Maria Normal separaram e ela ficou com Mariazinha e Zé Filho para criar. Zé foi morar do outro lado da cidade, ele bebe além da conta, mas é bom pai e paga cinqüenta reais de pensão todos os meses. Maria se vira do jeito que pode, lava roupas, passa, faz faxina em escritório, casa, qualquer coisa que ajude a sobreviver. O filho está de aniversário e o pai veio ajudar cantar parabéns. Pela conversa dela fico sabendo que vão convidar os filhos da Rosa, prima do Zé, os meninos da Zéfina, irmã da Maria, e um ou outro moleque que estiver por perto na hora do parabéns. Já estão de saída, Zé e Maria, vieram comprar farinha, ovo e leite para o bolo; um pote de doce de leite para rechear; leite condensado e Toddy para fazer brigadeiro; cinco refrigerantes. Aproveitaram e estão levando pão, café e seis latinhas de cerveja. São boa gente. Conheço os dois desde que namoravam, dou um pacote de bexigas para enfeitar o barraco.

Ele pergunta se pode abrir uma cerveja e leva um xingo acompanhado da informação - nova para mim, que cerveja quente faz a gente mijar. Zé não diz mais nada, assunto encerrado, e enquanto arruma tudo nas sacolas plásticas, na distração, encoxa Maria.

- Homi, não encosta que estou pegando fogo!

- Vixi! Arrumou outro traste ainda não?

- Eu sou mulher de arrumar um traste seguido do outro assim? Me Respeite!

- Tá ilesa faz quanto tempo Maria?

- Desde que você foi embora ué!

Eu sei que Maria está mentindo. Anda se pegando com o Oreste, marido da Zuleide, tudo escondido, mas aqui detrás desse balcão fico prestando atenção no bairro, mais por falta de trabalho que por interesse na vida alheia. Inclusive o amante andou pagando uns atrasados da Maria aqui na venda. Só pacote de arroz ela devia três. Não me meto na vida de ninguém e finjo que não sei de nada. Zé já está nitidamente encoxando a mãe dos seus filhos. Cara de pinguço que viu cachaça.

- Oito meses só pensando besteira é? Vamos resolver isso...

Eu finjo não estar presente, os dois continuam ensacando produtos em ritmo de acasalamento, finalmente ela amansa a voz e recolhe as garras. Gata no cio.

- As crianças voltam da creche só depois das cinco e meia...

Maria topou! Mais que depresa o Zé quer ir para o barraco da ex, oferece dois dos fardos plásticos para ela levar, são cinco no total. Ela imagina o peso, coloca dengo na voz para reclamar uma dor constante no braço. Faz pose de macho, pega todas as sacolas, enfia a mão nas dez alças, o peso cortando os dedos da mão esquerda. Passa a mão livre na cintura da fêmea que se desvencilha. Ela topou, mas avisa que não quer que o povo da rua saiba. Eu penso que Maria quer é esconder do Oreste.

Dia seguinte recebo um pedaço do bolo. Agradecimento pelos balões. Maria Normal desfia maravilhas da festa e reclama da prima do Zé.

- Rosa é uma abusada, pegou o pote inteiro do Toddy para fazer os brigadeiros e não devolveu o resto, disse que não sobrou. É capaz? - tenta me meter no assunto e eu esquivo.

- Vai ver é isso mesmo.

Maria resmunga mais um pouco, pega um pacote de arroz e manda marcar, já sei que esse também fica para o Oreste acertar.

Semanas de rotina depois Maria vem, pede outro pacote de arroz e solicita o telefone do mercado, vai ligar para o Zé. Anoto mais um real na caderneta e entrego o aparelho.

- Alô, Chama o Zé pra mim?

- ...

- Isso, Zé Comum.

- ...

- Encontra ele e diz que é Maria Normal, que vou ligar novamente em cinco minutos.

Só eu e ela no mercado. Até que seria uma mulher bonita, se não fosse tão judiada. Barriga mole, peito caído, fala muito palavrão. As pernas são fortes. Oreste deve suar para dar conta desse arrozal todo. Menos de dois minutos manda marcar mais um real na conta e liga outra vez. Não é justo mas eu marco cinqüenta centavos só para não perder o costume de cobrar. O Zé já estava esperando ela não prepara terreno:

- Tenho uma notícia pra você homi. Vai ser pai outra vez, tô de três meses.

- ...

- Do Espírito Santo é que não é seu filho-da-puta!

- ...

- Faz as contas desgraçado! Zé Filho fez aniversário quando?

Conversa mais uns minutos, chora. As lágrimas secam, ameaço marcar mais um real, ela manda o Zé tomar no olho do cu e desliga. Sai pisando duro, coxas grosas, as carnes da bunda tremendo embaixo da saia de algodão.

Pelo que pesquei da conversa ele quer largar tudo lá do outro lado da cidade e vir pra cá. Acho que vai dar rolo esse assunto e penso quanto de arroz tem marcado na conta. Maria Normal some na esquina, verifico as anotações, é quinto dia útil. No final da tarde fico na porta, Oreste passa eu chamo, ele paga. Com esse tipo de gente é muito bom saber algumas notícias antes delas se espalharem.

14 setembro 2006

DANOU-SE!!!

A Polícia Ambiental de Mato Grosso do Sul utiliza um cão vivo como isca para capturar onças pintadas próximas a zona urbana da cidade de Corumbá.

Alguém precisa informar as autoridades do MS que eles estão infringindo o artigo 32 da Lei de Proteção Ambiental Nº 9.605 - 12 de fevereiro de 1998!

Os responsáveis em zelar pelo bem estar da nossa fauna são os primeiros a violar a Lei. Não podiam usar um ganso? Também não é legal, mas com um ganso–patola ficaria mais engraçado...

30 agosto 2006

FALA SÉRIO!!!

Em outubro eu devo comparecer na minha sessão eleitoral e escolher um, entre os vários candidatos ao cargo de presidente do Brasil. Acontece que não quero eleger nenhum dos concorrentes, não confio no Lula, não acredito no Alckmin, Heloísa Helena é destemperada e Cristovan Buarque é um ingênuo. Os demais são figurantes em filme trash.

Se nosso legislativo fosse formado por gente séria, eu jamais seria obrigado a sair de casa para escolher um desses que se apresentam como candidato a comandar o país durante quatro anos após janeiro de 2007. Entre exercer a cidadania por acreditar que meu voto pode melhorar a situação geral do país e votar por que sou obrigado, nem deveria existir a segunda opção! Votar não é um direito?

Em alguns países - Brasil tá no meio, o voto não é um direito, e sim uma obrigação.

A prática do voto obrigatório remonta à Grécia Antiga, quando o legislador ateniense Sólon fez aprovar uma lei específica obrigando os cidadãos a escolher um dos partidos, caso não quisessem perder seus direitos de cidadãos* ... mas naqueles tempos ser cidadão romano tinha lá suas vantagens!!!

No Brasil, o voto é obrigatório para cidadãos entre 18 e 65 anos, e opcional para cidadãos de 16/17 ou acima de 65 anos. O meu voto ser obrigatório é uma distorção, pois votar é um direito! Ninguém pode ser coagido a exercer seus direitos... lógico que perde a graça se eu falar das sanções impostas contra quem não exerce seu DIREITO de voto.


*fonte de pesquisa: Wikipédia, a enciclopédia livre.

27 junho 2006

VITÓRIA

Faltavam-lhe as rugas coerentes com o tempo passando sobre a pele. Tinha apenas dois vincos profundos ao lado dos lábios, finos, quase másculos. Às vezes, quase nunca, para eventos sociais, ela passava um batom exageradamente destoante do formato dos lábios, do rosto, dos olhos. Enfeando o conjunto a agravante dos cabelos brancos nas frontes, logo acima das orelhas e caindo em franjas onde seriam as costeletas. Definitivamente não era bonita! Quando decidia mostrar alguma felicidade, parecia que o riso mordia e se transformava num assoviar entre lábios. Dentes branquinhos... Seria belo se ela soubesse mostrá-los. Vitória não sabia sorrir despachando a felicidade para além de suas laterais grisalhas. Não sei dizer exatamente como fui parar na cama dela, era pouco mais que um menino. Sabia nada! Na confusão das lembranças que guardo na mente, a rua Major Sertório, em meados de 1984, surge com suas boates, sua decadência e lá estou com algum amigo. Ambos sem dinheiro para pagar sequer as bebidas. As horas passam e apenas assistimos ao burburinho de freqüentadores subindo e descendo dos reservados. Mulheres em fila indiana oferecendo opulências que escapam dos trajes mambembes.

Uma vez por semana! Em dupla ou trio, o combinado era tirar sarro nas putas da boca do lixo. Eu bolinava seios, coxas, barrigas, empatando o lucro das biscates até ser desprezado pela falta de grana. Numa dessa o amigo tinha como pagar o uso do reservado e eu, após ser expulso, fiquei esperando, vestígios de inveja na gota de tristeza, encostado ao poste na calçada. De alguma janela, bailando no ar e impossível identificar a origem, escapava o lamento cortante de Maysa:
Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim


Uma saudade de casa! Do colo da mãe. Do abraço de uma das tantas Marias da adolescência. Maria, a última, que jurou não me esperar se eu viesse para a capital. O carro azul escuro encostou e pensei que estava estacionando, não estava, a mulher se entortou inteira para baixar o vidro e me olhar nos olhos. Deve ter perguntado se eu estava disponível, entendi ela perguntar se poderia ajudá-la e respondi que sim. Então entra. Entrar? É. Só então a ficha me caiu. Tentei explicar, mas a mulher não tinha tempo para conversas e deixou isso bem claro. Eu também não devia estar querendo me explicar direito... Maysa estava me deprimindo com sua doce melancolia. Melhor me afastar da Major Sertório. Entrei e fechei o vidro prendendo a música dentro de mim.
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi


Sem nenhuma conversa fomos para o motel na Barra Funda, onde ela avançou sobre meu corpo como se fosse formiga carnívora. As horas passando e eu descontando nela meus meses de solidão paulistana. Tinha jeito de mulher rica. Talvez não fosse, mas ficava a impressão por culpa da cara lambida de quem atropelou o tempo. Hora eu achava estranho, hora achava feio, hora achava que estava envelhecendo com dignidade e hora a achava bonita. Nenhuma ruga, apenas dois vincos nos cantos dos lábios. Amanheceu comigo e se assustou com o sol. Como se eu fosse leproso impediu que eu me aproximasse, lavou-se, trocou-se e perguntou meu preço. Não tenho preço. Querido, até eu tenho um preço! – sibilou. Foi um engano, não faço programa. Como não? Estava esperando um amigo e você me chamou, eu vim. Pareceu que ia sorrir, mas o sorriso mordeu e os lábios assoviaram alguma felicidade. Só então notei os dentes, branquinhos... Seriam bonitos se não fosse a boca fina, quase máscula, e os cabelos grisalhos escorrendo por sobre a orelha emoldurando o rosto liso, sem as marcas do tempo drenando a mocidade de sobre a pele. Na saída o letreiro verde ainda acesso: Over Night. No peito um desafogo misturado com a sensação de pecado. De adultério! Maria se apagando na saudade e Maysa em sofrimento eterno na música de ontem.
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí


Nos encontramos outras vezes. Várias. Sempre às quintas-feiras, dez da noite, na Major Sertório. O monza parava, como se fosse estacionar, e eu entrava. Algumas vezes dizia que estava vindo de algum evento ou compromisso social e por isso o batom, forte, descabido. Eu não ligava. Sempre o mesmo motel, a mesma fome de formiga carnívora e o mesmo medo de lepra ao amanhecer. Insistia em perguntar meu preço – a língua bipartida tateando o ar. Nunca tive. Vitória mordia o riso.
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar


Dezenas de quintas-feiras depois ela faltou. Fiquei até quase sexta-feira esperando, um frio! Era 1985 e ainda existia garoa em São Paulo, depois foi se acabando e nunca mais garoou. Eu já esquecera as Marias de Minas Gerais e fora esquecido pela Maria, a última, que cumpriu a jura se casando com alguém que não viria para a capital, não freqüentaria a Major Sertório nem empataria serviço de puta. Também não encontraria o fantasma de Maysa surfando em acordes pela garoa paulistana.
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar


Fui embora. Corpo em brasa, abstinência de formiga carnívora. Jamais voltei à boca do lixo numa quinta-feira. Era pouco mais homem. Sabia Nada! Nem a certeza se o nome dela era mesmo Vitória. Capaz que fosse.

09 junho 2006

PURO E BESTA


(autobiografia - parte 6.756 de 14.600)


Tinha dezoito anos quando cheguei em São Paulo. Não era inocente, nem puro e muito menos besta. Era alto e magro, extremamente magro, e cultivava um bigodinho ralo de menino querendo parecer homem... Talvez eu fosse um tantinho assim besta.

Peguei carona num caminhão de madeira que me deixou em Matão, interior do estado, e foi pedindo carona que me aproximei da capital. Vim para a cidade grande contra a vontade de minha mãe e desafiando meu pai que duvidava das qualidades que eu teimava possuir. Os desafios impensados seriam uma constante na minha vida – isso sei agora. Nos incolores anos oitenta eu era apenas um molecote abusado que acreditava ser capaz de sobreviver sem pedir ajuda a ninguém. Com certeza, tudo que precisava era encontrar rapidamente um emprego e mostrar que poderia, sim, viver livre de regras domésticas, de horários para chegar em casa e sem interferência paterna. Estava obstinado a não pedir socorro aos tios, avós e amigos da família que moravam em São Paulo. Começaria do zero e venceria. Num simbolismo que mascarava a fé e o medo, propus-me a decidir os rumos da nova vida exatamente no marco zero da cidade: em frente a catedral da Sé.

Desci do trem que me trouxera de Jundiaí até a Estação da Luz e caminhei, orientado por taxistas e policiais, até a praça da Sé. No marco zero decidi viver na região oeste da cidade. Não sei exatamente qual critério usei, mas lembro que era apaixonado pelas histórias de caubóis e heróis americanos que colonizaram o velho oeste. Na mochila eu carregava meia dúzia de revistas do Tex e um livro que contava a história de Wyatt Earp. Destemido como um colono americano, tomei o rumo da Rua Benjamin Constant. No primeiro ponto de ônibus solicitei maiores informações: bairro da Lapa. Subi. Alguns minutos depois desci na Rua Guaicurus, em frente ao Shopping Center Lapa. Sempre pedindo informações, cheguei na Rua Clélia e aluguei uma vaga na pensão da Dona Ziza. Se decidisse por um quarto individual com duas refeições diárias, meu dinheiro daria para um mês; se, no entanto, escolhesse dividir um quarto com mais três pessoas, e duas refeições diárias, a mesma quantia era suficiente para três meses de aluguel. Bom senso! Paguei dois meses adiantados. Dona Ziza riu quando pedi que não me devolvesse dinheiro algum mesmo que eu resolvesse ir embora antes do combinado. Era uma boa mulher e deve ter me considerado um rapaz inocente e puro.

Os três colegas de quarto eram operários que antes das cinco da manhã despertavam para o trabalho, e toda madrugada eu era acordado por ruídos e impropérios. Quando reclamava era pior. Eles debochavam me chamando de preguiçoso, mesmo sabendo que eu não precisava acordar cedo. Meu primeiro emprego foi como vendedor de sapatos na praça do Correio e meu turno de trabalho começava às quatorze horas. Invariavelmente eu retribuía os deboches da madrugada acordando-os por volta da meia-noite, hora em que chegava do trabalho. As provocações aconteceram até o dia que um deles partiu para a briga. Fizemos uma algazarra e Dona Ziza me trocou de quarto. Fiquei com um olho roxo, mas o estrago no adversário foi maior. Acredite!

Apenas onze dias após a chegada em São Paulo consegui emprego na loja de calçados. Um parente da Dona Ziza era gerente na matriz, QI é muito importante. Comecei a trabalhar, sem registro em carteira, numa filial do centro. Eu achei que a experiência de anos auxiliando papai a atender clientes no mercado da família seria o suficiente, mas não foi. Eu não era bom em vendas. Quinze dias depois de empregado cheguei na pensão e fui fazer contas. A comissão acumulada não daria para pagar nem a Dona Ziza, pois assim que comecei a trabalhar contei com o pagamento e me mudei para um quarto individual. E mais, almoçava na pensão e jantava numa lanchonete ao lado da loja. Precipitação! Se continuasse no mesmo ritmo, a lanchonete e a condução comeriam todo o ganho acumulado em um mês de vendas. Comecei a ficar desesperado. Por mais uma quinzena teria onde almoçar e dormir, mas e depois? Depois eu não tinha nem idéia, mas na hora decidi que era o caso de arrumar mais um emprego – meio período pela manhã, pensei. Ou então outro emprego em período integral perto da pensão, assim poderia eliminar a condução e economizar na refeição. A comida da Dona Ziza era bem melhor e mais barata que a da lanchonete. Pensei em milhões de possibilidades e só não pensei em desistir.

Havia uma concessionária de motos Honda bem em frente a pensão e, qual desbravador americano diante duma planície ocupada por garanhões selvagens, eu perdia alguns minutos todas as manhãs admirando aqueles cavalos modernos (terrível essa comparação, mas a biografia é minha. Não te mete!). No dia seguinte acordei cedo e fui até a loja, conversei com um funcionário e disse que gostava de motos e queria saber se tinha algum trabalho. Qualquer um. Apesar da boa vontade do sujeito, que era um dos sócios, não consegui o trabalho. Caminhando meio sem destino, fui parar no shopping Lapa. Na administração tentei, sem sucesso, um emprego. Tentei nas lojas, nada. Em quatro manhãs eu visitei todos os estabelecimentos em torno do Shopping e da pensão, sem conseguir nada. No quinto dia de procura, retornei ao meu quarto e me preparei para vender sapatos como fazia todos os dias. Estava cansado e desanimado, mas lembrei que seria dia de receber meu primeiro salário na nova vida. Quinze dias de suor seriam materializados em notas de dinheiro que me sustentariam por mais uma quinzena. Bem ou mal (ou seria mau?) o meu trabalho já estava me mantendo - pensei. Pagaria a lanchonete e compraria alguns passes de ônibus. A caminho da praça do Correio relembrava a discussão com o pai, as lágrimas da mãe, e o assombro dos irmãos enquanto eu saia de casa carregando tudo que tinha numa maleta e uma mochila. Lembrei dos parentes que moravam em São Paulo e ainda não visitara. Lembrei da a avó que morava na Freguesia do Ó, bem próximo a pensão. Lembrei tantas coisas vividas até aquele dia e me senti adulto, dono do meu destino, senhor da minha vida. Um vencedor! Esqueci do desânimo, do cansaço e também que o dinheiro a receber não seria suficiente. O ônibus sacolejava passando diante do parque da Água Branca e eu pairava feliz, acima de qualquer desconforto. Eliminando os detalhes, eu era um vencedor sorrindo para o verde do parque que ficava para trás.

Cinco da tarde, o gerente entregou um envelope contendo meu primeiro salário em São Paulo. Continuei atendendo e minha euforia, sentindo o volume do envelope no bolso da calça, contagiava até os ânimos dos clientes. Vendi bem. Ninguém que atendi saiu sem comprar ao menos um par de chinelos. Sete e meia da noite estava pronto para ir a lanchonete jantar e pagar a dívida quando entrou o ladrão. Em princípio me pareceu mais um cliente, então fiz a abordagem padrão e me coloquei a disposição para atendê-lo. Como num filme de faroeste a arma surgiu nas mãos do bandido antes que o mocinho pudesse esboçar qualquer reação. Acostumado com armas, pois desde criança que manejava cartucheiras e winchester's nas caçadas aos predadores do sítio em Minas Gerais, eu nunca tivera uma delas apontada para esse ponto bem ao centro dos olhos. Sabendo o estrago que uma arma pode causar, obedeci ao comando do assaltante e andei em direção ao caixa. A distância era pequena, mas cada vez que meus pés tocavam o solo, eu relembrava uma história da violência paulistana. Mortes brutais e gratuitas, daquelas que todos os dias apareciam estampadas em jornais e revistas, eram parte da realidade próxima de ser vivenciada. Eu não estava pronto para morrer! Eu não saíra de casa para ser assassinado numa loja do centro de São Paulo. A arma do bandido estocando minhas costelas devolvia o medo esquecido em Minas e me fazia perceber que ainda não era um homem. Era pouco mais que uma criança. Dependia sim da proteção do pai, e mais que isso, do carinho de mãe, da companhia dos irmãos. Durante todo o tempo que durou o assalto fui a primeira opção de alvo. Após retirar o dinheiro do caixa, o bandido, já com o auxílio de mais dois comparsas, começou a exigir os bens pessoais do gerente, dos clientes e dos funcionários. Nesta ordem. Senti a mão do sujeito arrancando minha carteira e acompanhei meu envelope ser passado de mão em mão até ser enfiado dentro de um saco de papel pardo. Durante a breve viagem do envelope algo se quebrou dentro de mim. Não sabia e ainda não sei bem o que era, mas ele sumindo dentro do saco pardo foi como um cair de noite repentino. Não lembro o que aconteceu em seguida, só recordo que nunca mais voltei à loja de calçados. Nem à lanchonete. A única lembrança daquela noite é ter deixado o centro da cidade no último ônibus da noite. Cheguei à pensão em silêncio para não acordar ninguém e, pela manhã, quando os operários do quarto ao lado saíram para trabalhar, eu também saí, levando todas minhas posses. Aos bens que trouxera de Minas Gerais tinha acrescentado um par de tênis. Antes das seis da manhã eu bati na porta da casa da avó, mãe do pai. Estava pedindo arrego.

NOTÍCIAS DO LADO DE LÁ

Morreu Juvânia. Obviamente filha de Juvenal da padaria e Vânia do lar ( numa época em que existia lar nas casas ). A morte dela me ating...